segunda-feira, 3 de março de 2014

Um pouco de poesia




A Vida na hora

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.
(Wislawa Szymborska)






“Ocorreu-me certa vez o pensamento de que se alguém quisesse arruinar e destruir totalmente um homem, infligindo-lhe o castigo mais terrível, algo que fizesse tremer o mais cruel assassino e o levasse a se encolher por antecipação, bastaria obrigá-lo a dedicar-se a um trabalho absolutamente desprovido de utilidade e sentido.”
(Dostoievski)



Poderia ao menos tocar
As ataduras da tua boca?
Panos de linho luminescentes
Com que magoas
Os que te pedem palavras?

Poderia através
Sentir teus dentes?
Tocar-lhes o marfim
E o liso da saliva

O molhado que mata e ressuscita?

Me permitirias te sentir a língua
Essa peça que alisa nossas nucas
E fere rubra
Nossas humanas delicadas espessuras?

Poderia ao menos tocar
Uma fibra desses linhos
Com repetidos cuidados
Abrir
Apenas um espaço, um grão de milho
Para te aspirar?
(Hilda Hilst)




"Para onde eu vou, vai-me o coração também, que ainda não arranjei modo de o largar pelo chão" (Valter Hugo Mãe)



"Temos o que abdicamos, porque o conservamos sonhado, intacto, eternamente à luz do sol que não há, ou da lua que não pode haver" (Fernando Pessoa)




"E eu não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta." (Clarice Lispector)




"Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte pra mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada.
Há muito tempo que não sou eu"
(Fernando Pessoa)




“A amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar.” (Fernando Pessoa)




"A única maneira segura de saber se um romance é bom ou ruim é simplesmente observar as nossas próprias sensações ao chegarmos à última página. Se estivermos vividos, frescos e cheios de ideias, então é bom: se abatidos, indiferentes, e com a vitalidade diminuida, então é ruim." 
(Virginia Woolf)




"Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos apenas por breves intermitências.
Uma vida inteira pode ser virada do avesso num só dia por uma dessas intermitências."
(Mia Couto)




"Se eu vivesse mil anos
Suportaria
Teu a ti procurar-se.
Te tomaria, Meu Deus,
Tuas luzes. Teu contraste"
(Hilda Hilst)




“Foi preciso a barata me doer tanto como se me arrancassem as unhas - e então não suportei mais e estou confessando que já sabia de uma verdade...
Pois não sou adulta bastante pra saber usar uma verdade sem me destruir.
(Clarice Lispector)

2 comentários:

Unknown disse...

ahh, a palavra
a palavra que ocupa todos os espaços
da mente e da alma

Unknown disse...

e não deixa um buraquinho...
amo isso! a palavra e sua ocupação!

saudade, jeff!